OS ANOS LOUCOS: UM ROTEIRO (FINAL

Julho de 2025

Michelangelo, quando perguntado sobre como havia criado a escultura de David (1504), considerada a obra prima por excelência desde o período do Renascimento, respondeu que não havia criado nada. O que tinha feito foi soprar a gigantesca pedra de mármore e revelar o que já estava lá. Coisa de gênio. De tempos em tempo se diz que algo novo "foi criado", mas se pode afirmar que já existia, e que só reaparece em nova embalagem. Em outras palavras, as de Antoine Lavoisier, o pai da química (1743/1794), na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se copia.

O que vivemos hoje, a década de 2020, tem muita semelhança com outros anos 20, os da década de 1920.  Ver em algum fato relevante do presente algo que já vivemos, e a que pode nos levar, é um empreendimento que exige um roteiro. A escolha é por definir o fato, que é a loucura do que vivemos hoje no mundo, e buscar entendê-la com o que aprendemos numa época semelhante já vivida no passado. A coincidência da natureza semelhante entre as duas décadas de séculos diferentes ajuda a buscar a saída para o imbloglio atual. Vamos lá, aos elementos que compõem meu roteiro em três partes: no presente, no passado, e num futuro possível.

I  - Antecedentes: o que é foi, em outra embalagem. 

Vida é movimento. Vida é ciclo. Ciclos de uma vez só, como a dos seres vivos, ou repetidos, como os ciclos de negócios, climáticos, bioquímicos, menstruais. Ciclos tem várias naturezas e diversas durações, medidas em prazos mais ou menos longos. Segue uma representação de fenômenos cíclicos nas figuras 1, 2 e 3.

                                                                                     CICLO CIRCADIANO

Parênteses: dois dos maiores economistas que influenciaram o mundo herdado das Revoluções Industriais e das Grandes Guerras foram John Maynard Keynes e Joseph A. Scumpeter. Entenderam o espírito do capitalismo, a incerteza e a dinâmica econômica dos ciclos, a política. Entre eles há uma coincidência histórica. Schumpeter nasceu em 1883, no mesmo ano de nascimento de Keynes e da morte de Marx . Um século depois, decidimos celebrar essa coincidência da data com a disruptiva Semana Marx-Keynes no IEPE/UFRGS. Sob o regime militar não se falava livremente nem sobre Marx, nem sobre a defesa do liberalismo. Durante a semana colocamos Porto Alegre no radar da liberdade de falar dos dois, trazendo os maiores especialistas do país, e com a apresentação dos trabalhos da nossa equipe e alunos. Causamos. Fecho o parênteses.

Deles seleciono dois conceitos importantes em Economia. A destruição criativa, ou destruição criadora é o conceito já presente em Marx mas popularizado pelo austríaco Joseph Schumpeter em seu livro Capitalismo, Socialismo e Democracia, publicado nos Estados Unidos em 1942.  "Esse processo de destruição criativa é o fato essencial do capitalismo" (Joseph A. Schumpeter) . Já o Espírito Animal (em inglês, animal spirits) é o conceito que John Maynard Keynes usou em seu livro de 1936 The General Theory of Employment, Interest and Money (1936) para descrever emoções que influenciam o comportamento humano. " (...) 

uma grande proporção de nossas atividades positivas depende mais de otimismo espontâneo (...) e só podem ser tomadas por resultado de um impulso espontâneo para a ação, ao invés da inação, e não como consequência de uma pensada média de benefícios multiplicada pelas probabilidades quantitativas."

 Mas há os ciclos longos. Os ciclos econômicos longos estudados pelo economista russo Nikolai Kondratiev (1892/1938) são formados por períodos que levam de 40 a 60 anos, e explicados como parte das revoluções tecnológicas que marcam com intensidade o mundo capitalista, ocasionando ondas de  crescimento e de crises. Ciclos longos levaram da ascensão à queda das eras comandadas pelas máquinas à vapor (1790-1850), pelas ferrovias (1850-1896), pela eletricidade e pelos automóveis (1896-1930). Hoje vivemos o ciclo da revolução tecnológica comandada pelo computador, pelas redes: a Era Digital. Essa sim, marca o final do que vivemos desde Atenas - a antiga ordem - até a virada do terceiro milênio. 

Nossa década é semelhante à dos anos de 1920, conhecida como Os Anos Loucos, que se seguiram aos horrores e os milhões de mortos da I Grande Guerra (1914/18) e aos outros da gripe espanhola (1917/19). Revoluções políticas, tecnológicas, das artes.  Na onda de liberdades trazida pela sociedade industrial e de consumo, movimentos artísticos modernistas se multiplicaram a partir da Europa. Grandes fluxos de imigração voltaram-se à nova Terra Prometida, a nova potência, os Estados Unidos. Seus Fundadores haviam escrito em Carta Constitucional  (1787) as bases para uma duradoura democracia, baseada na defesa da liberdade e do livre mercado, apesar da realidade da escravidão e de uma sangrenta Guerra Civil em curso. Até que em 1929 a quebra da Bolsa de Nova York levou o mundo conectado pelos mercados financeiros e comerciais à Grande Depressão. Enquanto isso, com o empobrecimento dos países perdedores da guerra e na esteira das ideias políticas revolucionárias, os "ismos" na Europa se formavam. Nazismo, fascismo, comunismo, produziam e acumulavam sementes para as "novas" guerras, apurando o caldo que serviu como alimento para o nascimento de estados totalitários, encobrindo o sol da liberdade. Os "ismos" estão até hoje no ar que respiramos.

O tratado de paz apressado e mal costurado que colocou fim à I Guerra (Tratado de Versailles e criação da Liga das Nações, 1919) produziu um caldo de ódio que alimentou o que viria a seguir: os extremismos.  Empobrecimento e rancor levam à II Grande Guerra (1939/45), com seus milhões de mortos e o uso de nova arma, a atômica. Nasce a consciência de que a humanidade poderia por fim si própria. 

Com o fim da guerra, em 1945, uma nova ordem mundial se impôs com a Conferência de Yalta, a criação da ONU (Organização das Nações Unidas), a assinatura dos acordos de Bretton Woods (1944), e a formação de dois grandes blocos de países líderes, Estados Unidos e Rússia/União Soviética. Esse ciclo o pós guerra durou de 1945 a1989, com a queda do Muro de Berlim. Um bloco agregou democracias e assentou-se na defesa da liberdade; outro agregou os países comunistas, multiplicando ditaduras. Aos chamados "países do Terceiro Mundo" como o Brasil, periféricos nos fluxos de comércio e de produção do mundo industrializado, restou um desenvolvimento dependente, ideal para o florescimento de ideais revolucionários.  

Nos anos 1970, uma nova guinada freou o crescimento global, somando duas rupturas. O fim do padrão-ouro (1971) no governo Nixon gerou instabilidade do mercado monetário internacional. Já os "choques do petróleo" (1973/1979) geraram a alta inflação mundial, e os países endividados em dólar começaram a quebrar sequencialmente, sofrendo com a hiperinflação. O bloco dos países socialistas (URSS) não acompanhou o crescimento da produtividade dos países de livre-mercado, provocando a crise econômica que levou à saída dos países do bloco. Veio abaixo o edifício construído por Bretton Woods e pela divisão do mundo da Guerra Fria, simbolizada pelo Muro de Berlim. Estava posta a necessidade de um novo acordo global,  que veio com a formação da União Europeia moldando a nova fase do ciclo mundial dos anos 1990.

A virada para o o ano 2000, já veio carregada de esperanças de um mundo melhor, sintetizada pela Agenda da ONU para o novo milênio como guia para a cooperação mundial. Mas por pouco tempo. A derrubada das Torres Gêmeas de Nova York em 2001 freou a onda de liberdades em nome da necessidade da segurança. Já o estouro da "bolha imobiliária" de 2008 trouxe o perigo de uma nova Depressão Econômica. O mundo vivia uma nova fase de incertezas e medos.  Já conectadas pelas novas tecnologias digitais, multidões organizadas por redes sociais passaram a se juntar nas praças clamando por liberdade, pelo fim das ditaduras e da corrupção. Era a Primavera Árabe. A derrubada de governos corruptos a partir de operações como a Mãos Limpas (anos 1990 na Itália) e a Lava-Jato (2014/21 no Brasil) pareciam conduzir-nos a um "novo normal". Só que não.

II - O presente: o mundo universalmente conectado do século XXI.

Apanhados em 2020 pela pandemia do coronavírus seus milhões de mortos em 2 anos, os países fecharam as suas fronteiras, abertas no período de globalização dos anos 1990. Terminada a pandemia, reabrem-se as fronteiras, emerge a potência China, e reafirma-se a cultura do consumo. Fluxos de migração voltam-se novamente para a Europa unificada, a renascida Terra Prometida. A mesma década dos 20, dois séculos, a mesma humanidade dividida entre o novo e o que havia sido por séculos, parte dela buscando no retrocesso o que já tinha sido, repetindo os movimentos inexoráveis do ciclo. 

Nos 4 bilhões de anos de existência da vida na Terra, existimos como Sapiens Sapiens há apenas 10 mil anos. Com o fim da última Era Glacial, recebemos um tépido planeta que gerou as condições da vida que temos, com a maravilhosa diversidade de que a vida é feita. Continuamos a avançar aceleradamente na ciência e na tecnologia (C&T). Mas o ritmo de desenvolvimento nessas áreas parece não considerar que um avanço infinito não é possível num planeta de recursos finitos. Temos usado esses recursos sem cuidar da sua eficiência, retirando deles mais do que podemos colocar em troca. Só que crescer sem limites é insustentável.

São duas faces da mesma moeda: a espécie que cria é a mesma que destrói. É gritante o contraste mostrado entre os avanços da C&T e o retrocesso registrado por fatos da última semana de abril. É contrapondo esses dois lados que moldo cada crônica.

Nos feriados desta Páscoa no Rio Grande do Sul foram registrados 10 feminicídos, todos cometidos pelos ex-companheiros das vítimas, das mais diferentes idades, nas mais diversas situações. Estoura também o roubo praticado contra pensionistas e aposentados do INSS nos últimos anos em "contribuição a associações de defesa dos aposentados e sindicatos da área" de quem o INSS deveria cuidar. Incêndios incontroláveis e chuvas torrenciais se multiplicam por toda a Terra.

Da outra face da moeda o telescópio James Webb nos envia imagens da existência de elementos muito distantes no Universo que ele percorre, e que são a base para a criação/existência da vida para além dessa maravilhosa vida na Terra. E já entrando em maio também são lembrados e homenageados os milhares de voluntários que atuaram nas enchentes do ano passado, que tirou tantas vidas e destruiu parte de nosso estado.

IV - O que será: o futuro se constrói hoje.

Com a década de 20 do século passado muitos aproveitaram a oportunidade e aprenderam. Agora temos a nossa oportunidade, buscando afastar por ações a repetição dos erros do passado. Nas crises moldam-se os líderes. São oportunidades para inovarmos no que podemos fazer para que a força de um não se sustente pela destruição do seu lado oposto, pois o movimento de destruição acaba com os dois. Um deles demorou esses milhões de anos para acontecer na esteira dos movimentos do ciclo contínuo da vida.  O outro pode acabar com ele num apertar de botão. Não precisamos antecipar o que o movimento do Universo tende a fazer nos próximos milhões de anos. Desfrutemos portanto da maravilha que temos: a vida.


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