DA ÁGUA QUE NOS DÁ VIDA  AO VÍRUS QUE NOS CONSOME

Abril de 2025


Dos tantos temas que a cada dia nos afetam, emocionam, movem, há que escolher. O tema superendividamento é pauta nos mais diversos eventos dos quais tenho participado, de modo recorrente: o crescimento impressionante do número de pessoas endividadas no país do futebol. Ou, o superendividamento no país da volta da inflação. 

Dados divulgados pelo Banco Central do Brasil informam que se joga no país a cada mês 30 bilhões de reais. Que valor é esse? Que país é esse? Esta estatística indica muita coisa e, quando acompanhada por outras, mais claramente ainda. Uma delas é o absurdo crescimento do endividamento das pessoas, principalmente das mais simples, que recorrem a todo tipo de emprestadores prendendo-se a uma situação difícil de escapar. A elas é oferecido, por exemplo, o "consignado do trabalhador", com dinheiro do seu próprio FGTS, crédito concedido por bancos a juros altos, como se isso permitisse escapar da prisão que é a situação de quem deve sem poder pagar por usar o cartão de crédito. Sem educação financeira, esses "créditos" funcionam como novas algemas que as prendem por longo tempo.

Outras estatísticas se ligam a essa das apostas em bets para descrevermos essa realidade da perda de capacidade de pagamento em um mundo que dá pinotes em ritmo frenétrico, como é o caso do tarifaço do Trump, que desmonta a estrutura que sustenta as atividades econômicas e as trocas internacionais.Uma dessas estatísticas é a da proporção da população que vive de bolsa-família (mais de 50 milhões dos 220 milhões de brasileiros) e seus "rebentos", ou seja, de bolsas novas criadas a cada dia, levando a uma enxurrada de fraudes, e pagas pelos governos com o dinheiro que arrecadam em proporção cada vez maior da renda dos seus contribuintes. Outra estatística perversa é da volta acelerada da inflação no supermercado onde o trabalhador, a dona de casa, o recebedor do bolsa-família, se viram para buscar no seu dia-a-dia o básico para sua sobrevivência. A inflação é causada pelo descontrole dos gastos do Governo Federal, acompanhada de outra, que é o aumento do endividamento federal como percentagem do PIB. 

Mais uma, vinda do peso dos gastos com os 3 poderes da República: a dos custos das decisões que, uma após outra, sem teto ou limite, têm concedido novos "direitos" - na verdade, penduricalhos auto-concedidos - aos operadores da Justiça no país onde o Estado, como parasita, só cresce a partir do que produzem os que trabalham.  Não me surpreende nesse tsunami notícias afins a decisão de 16 de abril de remunerar em mais de 200 mil reais por mês cada presidente das federações de futebol do país, e em 1 milhão de reais mensais o presidente do conjunto delas, a poderosa CBF, a confederação do polêmico presidente da CBF ao seu poderoso cargo no "país do futebol". O país que não ganha mais nenhum campeonato no mundo é também o mesmo dos jogadores brasileiros que ganham milhões em moeda forte nos maiores clubes de futebol do mundo mas, quando jogam pela seleção brasileira, jogam mal, muito mal. O fiasco que o time que veste a camiseta da seleção nos tem proporcionado coincide com a virada de quando o país passou a ocupar o noticiário mundial não mais como "o país do futebol", e sim como "o país da corrupção" e, como subproduto, da criminalidade. Mãos Limpas lá,  Lava Jato aqui, mas o que resta das investigações e condenações realizadas por essas operações hoje?

Zygmunt Bauman (1925/2017) foi o sociólogo polonês que escreveu Modernidade Líquida (1999),  tratando sobre as relações humanas e sociais da globalização pós anos 1960. Para ele a natureza dessas relações estavam levando ao enfraquecimento das instituições sólidas da modernidade como a que conhecíamos. Com relações sociais frágeis, incertas e voláteis, os indivíduos vão perdendo as referências e passam a não se comprometer com nada. Bauman andou pelo mundo expondo suas ideias sempre afirmando que era preciso desenvolver uma nova ética para os nossos tempos fluidos, analisando o caráter nas novas relações de um Mundo Líquido. Com ele aprendemos muito. Como ele muitos outros que, estimulados pelo presente instável, têm produzido ideias sobre nossos tempos, de como chegamos a isso,  e quais os possíveis cenários do amanhã. 

"As condições necessárias para garantir a sobrevivência humana (ou, ao menos, para aumentar suas probabilidades) deixou de ser divisível e 'localizável'. O sofrimento e os problemas de nossos dias tem, em todas as suas múltiplas formas e verdades, raízes planetárias que precisam de soluções planetárias." (BAUMAN, Z. Vida Líquida, 9º Edição, Austral:Paidos, 2015)


 




 

 A expressão "líquida" descreve bem nossa Era Digital. O dinheiro, por exemplo, deixou de ter qualquer referência material - como já teve com o ouro - para se tornar algo que se digita, fluindo e afetando de modo fundamental a vida das pessoas nas sociedades conectadas pela globalização. O dinheiro é planetário. Não tem rosto nem pátria, exceto nos países onde se preza a responsabilidade e justiça. Sem barreiras ou freios eficientes possíveis, o indivíduo tem na palma de sua mão uma ferramenta que tem gerado comportamentos massivos como este do superendividamento. Basta ter um cartão de crédito, com seus juros estratosféricos, um celular e alguns apps. Compras instantâneas e fabulosos montantes de apostas são feitos numa instantaneidade assustadora, e não se exige qualquer outro compromisso a não ser pagar.  O jogo tem o poder de viciar, como a bebida e as drogas. Trazem o prazer do imediato às custas de um futuro incerto, exigindo doses cada vez maiores e mais rápidas. Pessoas endividadas perdem sua liberdade, passam a ser prisioneiras de um credor que não tem rosto. Assim, não adianta "reclamar para o bispo", como no dizer popular de outros tempos.

As bets têm substituido outros apoiadores estampando as camisetas de praticamente todos os times de esporte. Sustentam times, respondem pelos milionários patrocínios dos eventos que reunem multidões em eventos transmitidos ao vivo pelo mundo. No esporte, são multidões de torcedores que se sentem parte de um grupo muito especial, o do seu time. Muitos vão rapidamente se transformando em apostadores no impulso, na oferta de todo tipo de ação ou resultado em campo. E às empresas de bet não se exige saber se o apostador é menor de idade, se usa o recurso do bolsa-família, se toma emprestado para isso. Alguma instituição que cuide disso, que regule e fiscalize. Mas, reconheçamos, não dá para esperar isso das instituições existentes. Ao mesmo tempo,  famosos que oferecem rifas comprovadamente fraudadas são defendidos nas ruas por seus seguidores. Assim, não houve qualquer inibição em conquistar uma eleição por unanimidade e, no momento seguinte, conceder a todos os que assim votaram salários de 200 pelo que antes faziam por 50 mil reais mensais como líderes de grupo ou gestores de qualidade. Profissionais que atuam no esporte, se ousam criticar o fato, são calados ou cancelados, como nesta semana o foram comentaristas da ESPN.

Se o milagre é muito, desconfie do santo. Não faz muito operadores do setor financeiro conquistaram milhões de pessoas a buscar conquistar "o sonho da casa própria" via empréstimos baratos, porém sem lastro, até então desconhecidos. Provou-se serem empréstimos impossíveis de serem pagos,  provocando o estouro da bolha imobiliária de 2008,  que se propagou pelo mundo todo. Liquidamente. De água limpa, virou veneno. O sonho virando pesadelo, destruindo pessoas e famílias, contaminando e desacreditando instituições. Na Netflix encontramos dezenas de filmes e documentários sobre isso. Vale ver, relatam e ensinam. É bom aprender.

Olhando para outro lado: neste abril Porto Alegre sedia importantes debates. Gostei do tema escolhido pelo IEE e seus parceiros no Fórum da Liberdade deste 2025: Coragem para Escolher.  Assumindo o governo do estado em em 2007 numa situação financeira crítica pelo histórico endividamento, escolhi o lema Coragem para Fazer. Era do que precisávamos para aplicar medidas que permitissem ao estado libertar-se de sua situação "pires da mão" frente a seus credores. Compreendo bem o significado do tema do IEE. Acompanho esse núcleo inovador de jovens desde a sua criação, em 1984, quando o país fervia com o fim-de-ciclo e seus desafios. O movimento das Diretas Já, a hiperinflação e a instabilidade no quadro de endividamento mundial que, com os choques do petróleo (1973 e 1979) e o fim do padrão ouro (1971), levaram à falência sequencialmente países ao redor do mundo. Hoje, com a discussão sobre o fim das democracias e da liberdade de expressão, mais uma vez aplaudo.

Nossas cidades e nosso estado têm enfrentado com o bom debate e ações corajosas de voluntários e de instituições os desafios globais como a pandemia de 2020, as enchentes de 2023/4, as secas recorrentes, a tendência dos extremos políticos, e os demais que o Mundo Líquido nos apresenta a cada dia. Que floresçam  as soluções planetárias (Bauman), as ações e as inovações frente aos desafios, que se valorize o bom debate. Aliás, chegam para mais uma edição o South Summit de Porto Alegre e o Fronteiras do Pensamento. A eles.


Yeda Rorato Crusius

Porto Alegre, abril de 2025.


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