FREUD, O VOTO, E A LICENÇA
PARA VIVER
04junho2022 – terça feira
A sensação de mal estar na civilização, descrita por Freud (1856/1939), foi por ele descrita como o choque entre o indivíduo e a sociedade que ele mesmo cria. Essa mesma sensação é evidente nos tempos atuais, quando a Europa vê retornar, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, a sombra das guerras que marcaram o século XX e que, junto com as pandemias, mataram milhões de seres em todo o mundo. A guerra é uma licença para matar.
Como pode o solitário indivíduo entender o porque dessa sensação de mal estar?
Nas primeiras décadas do século XX a Revolução Industrial criava novos produtos que mudavam aceleradamente o modo de vida em todo o mundo. Mudaram as relações de trabalho, afetando a organização das famílias, as formas de governo, as fronteiras e os países, dando início a uma nova era de globalização. Com ela, a liberdade de mudar, uma mobilidade quase sem fronteiras.
O mesmo acontece ao início deste novo século XXI, o primeiro do novo milênio, com a revolução da Indústria 4.0 da Era da Internet. Intensifica-se a aceleração das mudanças em todo o mundo, em rede. A real possibilidade de robôs ganharem "inteligência artificial" é um dos principais temas de manifestações e debates. Séries de streamings, muitos livros e filmes tratam do tema. Um romance recente, “Código Mãe”, da cientista Carole Stivers, trata de ligar maternidade e robôs inteligentes.
Tive nos anos 1990, já adulta, algumas crises de pânico. Não se falava muito sobre isso e se conhecia pouco sobre pânico. A primeira crise tive quando, depois de ser assaltada sob a mira de dois revólveres entrando no carro em plena luz do dia. Depois foi quando viajei a trabalho para países (EUA e Europa) onde se falava outra língua, que eu dominava. Ao começar a apresentação do meu trabalho na Hungria fui tomada pela sensação instantânea de pânico. O mesmo aconteceu ao início de uma entrevista na Bloomberg de NY. Fui atrás de entender o porque do pânico. Foram meses de terapia, pesquisa, muita conversa, novos medicamentos, troca de experiências com casos semelhantes. Sim, deu certo. Encarei a fera nos olhos. Voltei a dirigir de modo um pouco diferente. Voltei a viajar para países, falando as outras línguas, preparando-me de modo um pouco diferente.
Voltei ao mundo da comunicação, sem pânico. Dei-me bem ao longo da vida pelas diversas formas de comunicação que pude realizar. Fui professora, trabalhei em jornais, rádio, TV, fui palestrante, voluntária em movimentos sociais, parlamentar, governadora, candidata por nove vezes. A política, principalmente pela via eleitoral, requer conversas, diálogo, democracia. Fundalmente, a política da busca de votos lida com emoções.
Para mim essa
sensação de mal-estar de nossos tempos vem da incomunicabilidade
presente na cultura dos nossos dias. Conversar
com a máquina, e através da máquina, isola. Impede. Proibe. Mascara a
realidade. Manipula as emoções. Veja-se como, no livro Os Engenheiros do Cáos, de Giuliano da Empole.
Então chega a pandemia causada pelo coronavírus de 2020. Hospitais lotados. Milhões de mortos, enterrados sem velório em cemitérios construídos às pressas, tudo sendo transmitido em tempo real. Impedidas as formas de mobilidade características da nova Era da Globalização, a tudo exceto farmácias e supermercados, aplica-se a regra do “fique em casa” . As “lives” foram uma válvula de escape que segurou o caldeirão da revolta nas cidades e minorou o sofrimento da separação das pessoas e das famílias pelo isolamento forçado. Em todo o mndo, dinheiro foi fabricado para fazer chegar o Auxílio Emergencial para comprar comida. Por delivery.
Governos decidem o
que pode e o que não pode. Há cidades que ainda praticam o “lockdown”. Ruas
desertas. Um drone, na China, vigia cada pessoa que sai de casa, gritando
“volte para casa” - com exceção para quem prova estar indo à farmácia ou ao
mercado mais próximo. Drones, como sabemos, são comandados de longe. Não é por
menos o crescimento como epidemia das doenças mentais e sociais.
O “cidadão” precisa cada vez mais de licença para fazer qualquer coisa. Se não tem a tal licença, é impedido de fazer. A não ser que resolva fazer, podendo ser castigado pela escolha. E quem tem a autoridade para dar licença ou castigar é o tal de Estado. Escreveu e não leu, interdita-se o cidadão. Cidadão quem?
Sou de uma geração que gosta de falar com as pessoas mas não com as máquinas. Máquinas foram feitas para melhorar a vida, mas as coisas estão de tal maneira que decidem o que posso ou não. Usam um dialeto frio que desconheço. Quase tudo tem nome em inglês, e não há significado para palavras como “bluetooth” e tantas outras. Com meu espírito um tanto libertário, sinto-me algo deslocada dessa sociedade tecnológica em que o Estado só faz crescer. Ela me causa um certo mal estar que leva a fazer escolhas políticas com cada vez mais extremos e menos centro.
As escolas estão fechadas – só com EAD. Trabalho? “Homeworking”. Quer marcar uma consulta? Exceto para o que se relaciona ao vírus, “todas as consultas estão suspensas” não importa que a doença cresça. As emergências passaram a atender somente os doentes pelo vírus. Quer alimentar-se? Chame um “delivery”. Só não pague com dinheiro vivo. Dinheiro agora é virtual, pelo cartão, ou pelo celular num pix. E para pagar com pix, escolha suas “chaves”. CPF. Identidade. Número de celular. Tudo sob licença.
A Era dos
Extremos. Na prática do dia-a-dia alguns se colocam dentro de uma realidade
particular, paralela, e tentam ser deuses. É uma minoria bem barulhenta. A realidade
virtual, a Inteligência Artificial, e o vertiginoso crescimento das redes
sociais, assombram o mundo com a possibilidade de estarmos sendo vigiados e
controlados pelo Grande Irmão, como Orwell expressou no seu genial livro 1984,
escrito em 1947, logo depois dos horrores da II Grande Guerra. Promovidas por
homens que se julgavam deuses, eles organizaram em vários países da Europa as
sociedades totalitárias: o fascismo do italiano Benito Mussolini (1883/1945), o nazismo do alemão Adolph
Hitler (1889/1945), o comunismo do russo Joseph Stalin (1878/1953). Os senhores da guerra.
ZygmuntBauman(1925/2017), filósofo e sociólogo polonês, adotou um conceito que chamou de “modernidade líquida”,uma significativa mudança nas relações sociais entre indivíduos. "As relações escorrem pelo vão dos dedos. A insegurança seria parte estrutural da constituição do sujeito pó-moderno, conforme escreve em "Medo Líquido". O mundo caminha com o consumo demasiado ascarretando a degradação ambiental, a face desumana do capitalismo moderno. O sujeito torna-se apenas o que ele consome, e não mais o que ele é". (wikipedia)
Os senhores da comunicação, donos das poderosas ferramentas de que dispõem “as máquinas” que passam a "conhecer" melhor a pessoa do que a própria pessoa, porque processam bilhões a caminho dos trilhões de informações numa velocidade que nenhum humano é capaz de fazer. Com isso inclusive conduzem o consumo e o voto.
Criptomoeda. Metaverso.
Matrix. Ruptura. Realidades paralelas. Ficção. Por isso é tão bem vinda a coluna de Fernando Schüller, com o
atrativo título “A Arte da Vida - O
desejo humano: pandemia fez urgente o que era distante” (Veja, 22/05/2022). Na
linha do artigo, diante desse mal estar, indivíduos escolhem o que Jesse Kox
escolheu: pegar a estrada. Mas precisa de licenças, o preço do Estado. Milhões
de brasileiros vão morar em outro país, ou retornam ao campo. Com a pandemia, o
que era latente passou a ser urgente. Nada de esperar a aposentadoria: viver
AGORA.
Não é o fim do mundo. A História não tem fim. Só se repete como farsa. Porque não desejamos Licença para Matar, podemos ser as autoridades emissoras dessa nova licença: a Licença para Viver. A ela.
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